OCINÓRI - A Tasquinha do Irónico

quinta-feira, novembro 23, 2006

FAZIA 100 ANOS... MAS AFINAL FAZ 5!

Era sapateiro e vivia num bairro como poucos deste país. A sua oficina era tão cheia de improviso e de desorganização como o talento dele para o calçado.
Não havia novidade… os pés podiam ter joanetes, serem chatos, grandes, pequenos ou perfeitos mas se passavam pelas mãos dele… era como uma luva assenta-se em qualquer pé! Era o melhor…
Tinha as mãos duras, ásperas… a vida não foi meiga!
E aquele caixote de lixo, negro como a noite, de ter ardido tanto papel… debaixo da banca… As marcas estavam bem visíveis na perna!
E as formas? Estendidas aleatoriamente pelo chão aguardando a sua vez para entrar em acção.
E a cadeira ao canto para servir qualquer cliente ou amigo para uma conversa informal.
A banca escura do serviço, a maçaneta da porta improvisada para alguém a conseguir abrir e a nota de 20$00 com o Gago Coutinho colada na parede.
Era rude… Não media o tamanho das palavras! Nunca o disse a ninguém mas qualquer pessoa sabia bem…. Antes quebrar do que vergar!
Era difícil arrancar um elogio mas quando o dava era sincero mas a sua preocupação por aqueles que gostava era imensa. Sempre teve um carinho absoluto por dois netos… E percebo bem o porquê!
O que mais impressionava era a sua vontade de viver. Á medida que a idade pesava os sonhos e a vontade aumentavam. Chegar aos 100 anos era um sonho idílico… mais a sua vontade de fazer uma prateleira para a sua biblioteca, mais uma planta no quintal, ler mais um livro para partilhar o que aprendeu… Tinha uma visão da vida completamente diferente de qualquer pessoa deste país.
E aquele estrondoso sucesso no bairro por ter conseguido plantar uma bananeira e com carinho e cuidado… esta lá lhe retribuiu com os seus frutos! Suprema glória de um sonho!
E os ananases? Naquela improvisada estufa junto à janela… Também lhe retribuiu!
A leitura era uma das mais verdadeiras paixões… uma biblioteca que ia desde a economia, a geografia, astronomia… tanta coisa e tantas coisas de luxo para uma alma só! Culto!
Era a cultura em pessoa! Lia com uma lentidão desconcertante mas assimilava cada palavra para que fosse usada como arma ou escudo na defesa dos seus ideais.
Tinha uma retórica verdadeiramente devoras e intimidativa… Batia, defendia, rebatia, argumentava, provocava e provava que cada ideia sua era viável e razoável. Impressionante!
Muito poucos faziam-lhe frente com as palavras (até aqueles que tinham mais do que um simples canudo) … mas a sua vontade de partilhar o que aprendia era ainda mais contagiante!
Enorme fã de futebol… bem jogado claro! Tinha uma enorme paixão pela pureza do futebol inglês, dos dribles dos jogadores do escrete e da simplicidade dos clubes da sua cidade.
A sua simplicidade na vontade de um breve jogo de damas… era um delírio!
O lugar à mesa era sempre mesmo, acompanhado por talheres pesados e uma boa dose de “combustível” para ter as forças necessárias para laborar horas seguidas… e ao lado uma cadeira vermelha de bebé que tanto o fazia rejubilar de alegria.
As malhas que se vai cosendo no presente aparecem no futuro e por sua culpa, teve de aprender aos 80 anos a cozinhar, a coser, a passar, a lavar… Era impressionante a sua vontade de aprender!
E os olhos? Essa enorme dádiva que teve! Nunca precisou de óculos… e senão fosse a tremura das mãos lá continuaria a pôr a linha na agulha!
Os ouvidos é que não o acompanharam mas o tempo da telefonia já tinha passado e o jogo de imagens da televisão levavam-no a voar pelas asas da sua imaginação!
O lema era sempre o mesmo… era preciso trabalhar e depois descansar um pouco para depois voltar a produzir e nos intervalos… sonhar!


É tão difícil encontrar alguém com esta enorme força!
Era um mestre como sapateiro e como… Avô!
Era o meu Avô!
Hoje fazia 100 anos… mas afinal faz 5!

6 Comments:

  • Gostei das palavras sentidas...
    Essa pessoa deveria ter-te sido bastante especial, boa homenagem!
    Gostei, fez-me pensar nos meus avós também!
    Gostei...

    By Anonymous Anónimo, at 5:08 da tarde, novembro 23, 2006  

  • E quando o coração fala, a pena obedece, escrevendo prosas como esta.

    Um grande RAUF para ti!

    By Anonymous Anónimo, at 4:01 da tarde, novembro 24, 2006  

  • Obrigado a todos... um sentido agradecimento!

    By Blogger Tentini, at 12:41 da tarde, novembro 27, 2006  

  • Pela segunda e última vez este ano, fui desafiado para uma cena qualquer. Quis partilhar a minha imensa alegria contigo e como tal decidi passar-te o testemunho. Vai agora, e espalha a palavra do Rafeiro pela blogosfera!

    PS: este texto não é só para ti. Vou fazer o belo do COPY-PASTE para os outros desafiados ou não me deitava hoje...

    Um grande RAUF para ti!

    By Anonymous Anónimo, at 10:14 da tarde, novembro 27, 2006  

  • Não me esqueço da admiração que senti ao entrar naquela verdadeira selva; do obscuro da oficina; da bananeira; do insólito ananás (QUE COISA ESTRANHA JUNTO À JANELA!!!!). E as minhas belas botas verdes da tropa, lembras-te? Ficaram como novas. Mas duras que nem os cornos do demo! Os meus ricos pés também não se esquecem.
    E aquelas mãos. Curvas estranhas, autenticamente esculpidas.
    Caraças do ananás!

    By Blogger Gustavo, at 7:37 da tarde, novembro 28, 2006  

  • Valeu mano...
    Valeu!

    By Blogger Tentini, at 12:36 da tarde, novembro 29, 2006  

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